ANÁLISE DE CONJUNTURA – ASSEMBLÉIA GERAL
Não é documento oficial da CNBB
Apresentação
Encerra-se agora o ciclo iniciado no segundo semestre de 2000, quando uma nova equipe substituiu o Pe. Virgílio Uchoa na preparação da análise de conjuntura para a CNBB. Desde então procuramos ver o mundo na contramão do ideário neoliberal, que tanto na mídia quanto na academia desqualifica como “atrasado” quem não assume o postulado de ser o sistema capitalista de mercado inerente à natureza humana. Por isso, desde o início vimos nos Fóruns Sociais Mundiais, inaugurados 2001, mais do que um contraponto ao Fórum Econômico de Davos: ali eram entrelaçadas experiências alternativas ao capitalismo e se anunciava que “um outro mundo é possível”. Passados apenas oito anos, a realidade é bem outra: enquanto em Belém do Pará cresce a consciência planetária e consolida-se a rede de solidariedade mundial a partir do “Sul”, os global players do capitalismo reunidos em Davos pedem socorro ao Estado para evitar a falência do sistema financeiro baseado no dólar. O fato que gerou essa mudança profunda foi a crise financeira de setembro de 2008, que já é considerada como o “muro de Berlim” do neoliberalismo. Dada sua importância, é sobre a natureza dessa crise, mais do que sobre os fatos recentes da política, economia e sociedade, que versa a primeira parte desta análise de conjuntura, que traz, na segunda parte a análise do que vai pelo Congresso, de responsabilidade do Pe. J. Ernanne Pinheiro.
I - A crise global e o Brasil
O foco do debate: a natureza da crise
Ninguém questiona que a instabilidade do sistema financeiro dos EUA se alastrou pelo mundo e já afeta toda a economia mundial, tampouco se questiona sua causa imediata: a irresponsabilidade de agentes do mercado financeiro e a falta de regulamentação eficaz sobre seu comportamento. O que está em debate é a natureza e os desdobramentos da atual crise. Num pólo estão os que veem nela apenas uma ocorrência cíclica normal no sistema capitalista, cujo crescimento sempre alterna tempos de expansão e de contração da economia. No outro pólo, estão os que percebem nela o limite final do sistema econômico movido pelo produtivismo consumista que tem como meta o lucro para o capital, ou seja, o capitalismo.
Em favor do primeiro argumento, pesa o fato de já se registrarem 46 crises no sistema capitalista desde 1790. Segundo a teoria econômica clássica, as crises são inerentes ao sistema de mercado pois funcionam como fator de seu aperfeiçoamento ao obrigá-lo a corrigir seus erros e exageros. Para essa corrente de pensamento, que orienta os global players da economia e predomina entre os analistas econômicos que se manifestam pelos principais meios de comunicação de massa, o mais importante hoje é evitar o “alarmismo” e recuperar a confiança no setor financeiro. Em termos práticos, isso significa injetar uma enorme quantidade de fundos públicos em socorro de instituições financeiras e empresas para tranquilizar o mercado e assim reativar a economia. Seguindo essa receita, em breve passará a turbulência e o capitalismo seguirá sua trajetória histórica, ainda que deva se submeter a maior controle externo – o que colocaria um ponto final no neoliberalismo que marcou as três últimas décadas. Esta foi a tônica da cobertura dada à reunião do G-20, em Londres, no início de abril.
Em favor da argumentação contrária, pesa o fato de estar esta crise econômico-financeira embutida num conjunto de crises que a tornam muitíssimo mais grave. O déficit energético, o aquecimento global, a perda da biodiversidade, a escassez de água, a ausência de governança global e o esvaziamento ético da economia e da política, são sintomas de uma crise que incide na própria estrutura do sistema: o mercado produtivista e consumista regido pela lógica do lucro. Essa visão orienta os Movimentos Sociais altermundistas que se fizeram presentes no Fórum Social Mundial e tem sido elaborada por intelectuais a eles ligados.
Tendo em vista que a argumentação tendente a reduzir a crise atual à sua dimensão econômico-financeira tem sido muito difundida por meio de artigos (p.ex. Delfim Netto), na no rádio e na TV por comentaristas econômicos (como Mirian Leitão), e por figuras do Governo Federal (o presidente do Banco Central, o Ministro da Fazenda e o próprio Presidente da República), vamos apresentar aqui a argumentação contrária, que tem menor divulgação entre o público.
Sabemos que as crises no capitalismo são cíclicas e contribuem para depurá-lo de seus erros, mas isso não significa que esse sistema tenha o atributo da perenidade. Esboçado nas cidades do norte da Itália desde o século 13, estruturou-se no século 16, provocou a revolução industrial no século 18 e consolidou-se por meio das revoluções política e cultural do século 19. No século 20 atingiu a maturidade, ao mundializar-se pelo processo de globalização. Ao longo do tempo, não só assumiu diferentes formas – mercantilista, liberal, imperialista-colonial, de bem-estar social e neoliberal – como transferiu seus pólos (das cidades italianas para Amsterdã, dali para Londres e depois Nova York, de onde pode vir a transferir-se para Pequim). Todas essas mudanças foram acompanhadas de graves crises sociais e políticas, em geral resolvidas por meio de guerras. O que está em questão, agora, é se ele sobreviverá ao século 21.
Evidentemente, tal pergunta não entra na pauta da corrente de pensamento que descarta a priori a possibilidade de vir o sistema capitalista a desaparecer – exceto na ocorrência de uma verdadeira catástrofe humana e natural – mas está cada vez mais presente na agenda intelectual de quem acredita ser “um outro mundo possível”. Vejamos então, como se fundamenta a hipótese de ser esta uma crise sistêmica que, por não se reduzir a uma crise econômico-financeira, só poderá ser superada se for também superado o sistema de mercado produtivista / consumista.
Crise do sistema produtivista / consumista.
Estamos, sem dúvida, imersos numa grave crise financeira. Basta ter presente que enquanto o PIB mundial alcançou quase US$ 55 trilhões, em 2007, o volume dos direitos negociados no sistema financeiro mundial chegou a quase US$ 600 trilhões. Isso explica tanto o crescimento das grandes fortunas mundiais nas três últimas décadas, quanto a súbita diminuição daquelas que estavam fundadas em aplicações financeiras especulativas. (Ver o quadro da Revista Forbes). Tal fato se deve a que o mesmo indicador do valor (a moeda expressa em US$) aplica-se a duas realidades muito diferentes: o volume de bens e serviços efetivamente produzidos, e a compra e venda de direitos que são repassados sem que nenhum novo bem tenha sido produzido (por isso, chamados de derivativos). Essa forma mais avançada do capitalismo pode ser resumida no parâmetro ideal das aplicações financeiras: lucrar sem envolver-se com a produção.
De fato, o êxito do sistema de mercado regido pela lógica capitalista reside na sua enorme capacidade de produzir riquezas tendo em vista a possibilidade do lucro. Seu primeiro grande teórico, A. Smith, já dizia que não é o altruísmo e sim o espírito egoísta de lucro, que faz o padeiro levantar-se de madrugada para vender o pão logo pela manhã. O empresário usará todos os meios a seu alcance para obter lucro na sua atividade econômica: contratará ajudantes, inventará novas técnicas de produção e de gestão, buscará o apoio do Poder público para o seu negócio, acionará mecanismos de propaganda do seu produto, encontrará meios de financiar suas vendas; enfim, estará sempre buscando o lucro que provém da venda de sua produção – seja ela de bens ou serviços os mais diversos.
O problema do empresário reside no fato de que ele não é o único a oferecer bens e serviços no mercado: inúmeros outros empresários também almejam auferir lucro e tornam-se seus concorrentes. Mas o que é dificuldade para o empresário individual é a vantagem do sistema como um todo: a concorrência que lhe imprime um dinamismo intrínseco. O sistema de mercado não pode estabilizar-se, sob pena de não mais funcionar. Ele precisa estar sempre em expansão, isto é, integrar um número cada vez maior de pessoas em suas relações de compra e venda. O capital coloniza espaços cada vez maiores do mercado, que por sua vez coloniza a atividade elementar de base que desde a “revolução neolítica”, há dez mil anos atrás, é regida pelas relações de reciprocidade “dar / receber / retribuir”. Pois bem. Em pouco mais de cinco séculos o sistema capitalista de mercado gradualmente incorporou todo esse setor, de modo a alcançar hoje praticamente toda a população mundial. Até mesmo as comunidades fechadas, com um sistema autônomo de produção e consumo fundado na reciprocidade, têm alguma válvula de comunicação com o mercado, para o qual escoam a parte da sua produção necessária à aquisição dos bens que elas não conseguem produzir.
Esse dinamismo, contudo, só é possível na medida em que são ignorados os efeitos não-econômicos do processo de produção e consumo de bens regido pela lógica do lucro. A produção de lixo, o desperdício de matérias-primas e de energia, a destruição da biodiversidade, a degradação dos solos e das águas, os danos à saúde humana e animal, a exclusão social e a revolta dos excluídos, são considerados como externalidades, isto é, não devem ser considerados pela teoria econômica. Porque não os contabiliza, a economia capitalista transforma em lucro todos os bens e serviços que produz e vende. O problema, agora, é que, a se manter a mesma lógica econômica, as externalidades se voltarão contra o sistema e o travarão. O déficit energético, o aquecimento global e a desumanização das relações sociais estão hoje a apontar que o sistema capitalista de mercado está prestes a esgotar sua capacidade de produzir riqueza. É o que vamos mostrar em seguida.
As crises que podem travar o sistema produtivista / consumista.
O produtivismo consumista do capitalismo tem fome de energia. O carvão para a “revolução industrial”, e mais tarde, a hidroeletricidade e o petróleo em abundância, permitiram a farra consumista do século 20. É verdade que essa farra só é real para cerca de um bilhão de pessoas (que consomem 82% das riquezas do mundo), pois outro tanto passa fome e a grande maioria da população da Terra consome apenas o suficiente. Dubai é o emblema desse produtivismo consumista: o lucro gerado pelo petróleo (que deve esgotar-se em 2010) foi aplicado no turismo de alto luxo.
Acontece que essas fontes de energia ou não são renováveis (carvão, petróleo, gás) ou são fisicamente limitadas (hidroeletricidade). O mundo está num impasse: ou desenvolve novas fontes de energia, ou renuncia ao produtivismo consumista. O bilhão de pessoas que forma a “burguesia mundial” coloca suas esperanças nas novas fontes de energia que sejam renováveis (como a agroenergia) e, o quanto possível, “limpas”. A técnica representa para essa classe a grande esperança: ela acredita que um dia cientistas e pesquisadores descobrirão fontes de energia que lhe permita manter o atual padrão de consumo sem risco de esgotamento. Como esse dia ainda não chegou, os ricos continuam consumindo vorazmente os recursos da Terra, enquanto os pobres sonham poder consumir igual... O automóvel Tata começou a ser vendido na Índia por menos de US$2 mil (o modelo de padrão europeu, a ser lançado em 2011, custará 5.000 Euros).
Enquanto isso, a Terra vê aproximar-se uma nova era geológica marcada pelo aquecimento global. Embora esse processo provavelmente se deva também a fatores naturais, é certo que o produtivismo consumista é a causa humana responsável por sua aceleração. As estimativas são incertas, porque o tempo da Terra é muito mais longo do que a biografia dos humanos, mas não resta dúvida que os regimes climáticos atuais sofrerão grandes mudanças. O degelo da calota polar, o alagamento das zonas litorâneas, a expansão dos desertos (até mesmo o “rio aéreo” da floresta amazônica pode secar) e a desertificação dos mares são previsíveis. Só falta saber a data exata...
Neste momento de crise global, o mundo se desumaniza na medida em que impera a “lei do mais forte”. No plano internacional, ganham contornos assustadores as guerras: o massacre do povo palestino na Faixa de Gaza pelo Estado de Israel, a invasão do Iraque e Afeganistão pelos EUA e seus aliados, e os conflitos na África – onde milícias tribais e exércitos (em grande parte formados por meninos, pois a tecnologia atual não requer força física para empunhar uma arma!) ceifam milhares de vidas, enquanto mulheres são violentadas e a ajuda em alimentos é saqueada. Muitas dessas guerras são incentivadas por interesses externos, ligados à mineração – além das antigas empresas européias e estadunidenses, é importante a presença de capitais chineses, principalmente nas obras de infraestrutura para exportação.
No âmbito local aumenta a violência como forma de resolver as tensões sociais. As chamadas “guerras contra as drogas” usam de forma desproporcional as forças armadas dos Estados (polícia e exército) bem como paramilitares, para esmagar as organizações e grupos criminosos. Estes, por sua vez revidam com força cada vez maior e descarregam sua vingança contra os mais fracos, fazendo grande número de vítimas entre a população. Essa violência que se difunde por toda parte como forma de resolver pela força questões que deveriam ser resolvidas por meios políticos e jurídicos, têm por efeito esgarçar os laços de solidariedade e difundir uma atitude cínica, que transforma todas as desgraças em espetáculo televisivo. Aliás, este é um tema recorrente no cinema desde o sucesso do Titanic, que espetacularizou o afundamento da civilização ocidental.
Essas crises são agravadas pelo fato de o mundo não contar com nenhum povo que por seus valores morais desperte a admiração dos demais, como eram os EUA na primeira metade do século 20, quando exerceram a liderança mundial.
Para sair da crise: bases teóricas
Fomos acostumados a ver a economia como uma área de conhecimento especializado, sobre a qual só gente com muito estudo (de preferência, numa universidade dos EUA) pode se pronunciar. Esquecemos que a teoria econômica nasceu como Economia Política, ao desligar-se da Ética que até o século 18 regulava o mercado. Só recentemente o pensamento neoliberal separou a Economia como ciência do funcionamento do mercado, e a Política como ciência que estuda o funcionamento do Estado. (Por isso o Presidente Lula confiou o Banco Central a H. Meirelles, como se as decisões macroeconômicas não fossem eminentemente políticas). A eclosão da crise implode essa compartimentação de saberes e obriga a alargar o conceito de Economia, para que as relações sociais de produção e distribuição das riquezas sejam inseridas no âmbito das relações dos humanos com a Terra, relações estas que não podem perder seu caráter ético.
Essa mudança na teoria econômica permite-nos descortinar um cenário inteiramente diferente daquele que nos é traçado pelos economistas do sistema. Ao privilegiar a lógica do valor de uso sobre a lógica do valor de troca, o mercado se tornará simples regulador entre a oferta e a procura, perdendo sua capacidade de gerar lucro para quem transforma dinheiro em capital. Esboça-se então um modo de produção e consumo no qual o mercado não seja a única instituição reguladora da produção e distribuição de bens, mas se coadune a outras instituições como a economia solidária, a cooperativa e o planejamento estatal e no qual seja respeitado o princípio da subsidiariedade: não assuma a instância maior o que a instância menor for capaz de fazer.
Talvez o pensamento e o exemplo de Ghandi – que faz a ponte entre a racionalidade ocidental e a sabedoria indiana – venha a servir como inspiração para um modo de produção voltado não para o crescimento econômico, mas para o bem-estar de todo ser vivo. Seu ideal humanista de simplicidade de vida, de não-violência (inclusive contra os animais, daí sua prática vegetariana) de autonomia local e regional, pode ser a base de uma nova economia: uma economia que abdica da utopia produtivista do progresso sem fim, para alcançar a utopia da harmonia universal com toda a comunidade de vida – a bela e provocante expressão usada na Carta da Terra para designar o conjunto dos seres viventes, superando o especismo humano.
Em outras palavras: a teoria mostra o caminho de superação da crise sistema passa pela redução da produção e do consumo de bens materiais e o aumento da produção de bens imateriais, acompanhada da partilha equitativa dos bens já disponíveis. Para sair da crise, há que pensar unidades de produção locais, articuladas em rede, com baixo consumo de energia (em relação aos parâmetros atuais nos países e setores ricos) e submissão aos imperativos éticos, pois não cabe economizar no custo monetário quando isso implica custo ecológico ou humano.
Será isso uma utopia? Sim, mas é uma utopia que merece maior credibilidade do que as utopias da tecnologia onipotente, do progresso sem fim e da satisfação dos desejos por meio do consumo de mercadorias, que leva a Dubai.
Para sair da crise: pistas práticas
O Fórum Social Mundial realizado em Belém, em janeiro deste ano, mostrou que estão sendo dados passos importantes em direção a esse novo modo de produção e consumo. Percebê-los é o desafio de quem precisa entender os sinais dos tempos. Um destes é a economia solidária, que avança em diferentes partes do nosso Planeta. Ela não quer ser uma forma de política social – focada no atendimento às necessidades de pessoas excluídas do mercado – mas política econômica – um novo modo de produzir, distribuir e consumir bens e serviços.
Estima-se que existem no mínimo 22 mil empreendimentos de economia solidária no Brasil, onde trabalham cerca de 2 milhões de pessoas. São, em sua grande maioria, pequenas unidades de produção e/ou consumo. A variedade é grande: empresas falidas ocupadas pelos empregados, assentamentos rurais, cooperativas de produção artesanal, grupos de coletadores de material reciclável, cooperativas de serviços, bancos com moeda local e muitos empreendimentos de geração de renda. Esses empreendimentos enfrentam inúmeras dificuldades para sobreviverem no mercado regido pela lógica concorrencial dos interesses privados. Às dificuldades de ordem jurídica, referentes à obtenção do estatuto legal para integrar-se à economia formal (v.g. emitir nota fiscal, participar de licitações), acrescentam-se as dificuldades de formação para atuar segundo a lógica da solidariedade e não da lógica concorrencial vigente no mercado.
Neste contexto, o Programa Economia Solidária em Desenvolvimento do Ministério do Trabalho e a I Conferência Nacional de Economia Solidária indicam a contribuição do Governo para um modo de produção alternativo ao capitalismo, onde os próprios trabalhadores e trabalhadoras assumem coletivamente a gestão de seus empreendimentos econômicos.
Para superar a crise global, porém, a economia solidária precisará passar do nível micro ao nível macro: uma coisa são os empreendimentos locais, que agrupam no máximo algumas centenas de pessoas trabalhando; outra coisa é sua capacidade de um dia vir a atender as necessidades de 7 bilhões de pessoas, muitas delas querendo satisfazer os desejos atiçados pela propaganda veiculada pelo sistema capitalista. Esse salto não significa gerar empresas gigantescas e transnacionais, mas desenvolver a moderna organização em rede: inúmeras pequenas unidades autônomas quanto à sua gestão mas articuladas entre si na consecução de projetos comuns. “Pensar globalmente e agir localmente” significa, hoje mais do que antes, ter um pé firme na base local, o outro caminhando para uma articulação regional, e os olhos na articulação nacional, continental e planetária. A gestão dessa rede só será efetiva se basear-se numa verdadeira democracia na qual o poder econômico não tenham peso algum e as minorias sejam respeitadas dentro dos rumos traçados pela maioria.
Outra dificuldade a ser vencida reside no campo dos valores que regem o comportamento humano. Desde o Renascimento europeu, a concepção da pessoa humana como indivíduo livre tornou-se a base dos valores e direitos que regulam as nossas relações com outras pessoas e com a natureza. Essa concepção veio de par com a economia de mercado, que a levou ao extremo do egocentrismo. Assim como o egocentrismo deu a forma moral ao modo capitalista de produção e consumo, um novo paradigma de valores deve acompanhar o modo de produção e consumo ecológico e solidário. É o que vem sendo chamado de consciência planetária: o ser humano como parte da grande comunidade de vida do Planeta. Essa nova forma de consciência precisa apoiar-se numa ética universalista (que inclua os direitos da Terra) e só terá a ganhar se gerar uma espiritualidade que a anime desde seu interior.
As políticas do governo Lula frente à crise
As principais medidas tomadas pelo governo Lula vão, salvo raras exceções, na direção contrária à construção de “outro mundo possível”. Só recentemente o Banco Central começou a baixar a elevada taxa de juros – que retira dinheiro da economia real para alimentar o jogo financeiro dos rentistas improdutivos. O “pacote” de medidas do governo para dar liquidez à economia, é incapaz de atingir a raiz da crise, que é a especulação financeira. A política macroeconômica conduzida por H. Meirelles segue igual ao que era antes da crise: ignora o fracasso da autorregulação do mercado e continua apostando no futuro do sistema de mercado regido pela lógica do lucro e pelo produtivismo. Embora tenha diminuído sua meta, a realização de superávits primários (eufemismo que serve para camuflar o déficit fiscal provocado pelo serviço da dívida) continuará sangrando o Tesouro Nacional para sustentar a renda dos credores da dívida pública.
Além disso, o Presidente continua dando força ao agronegócio e à mineração, sem atentar para os danos que causam ao meio-ambiente. Tudo se passa como se o aumento da produção para a exportação fosse uma solução e não um paliativo que adia a crise econômica mas antecipa a crise ecológica – que é muito mais grave. Por acreditar que se trata apenas de uma crise financeira e que o capitalismo encontrará uma solução tecnológica para os problemas de energia e de meio-ambiente, Lula aposta tudo na recuperação do sistema financeiro, reforça o produtivismo consumista e continua a incentivar a produção de commodities para exportação, como se o Brasil, por ter abundância de recursos naturais, tivesse a obrigação moral de vendê-los a baixo preço para os outros países.
Nesta conjuntura, ganham importância os movimentos sociais, urbanos e rurais, e as pastorais sociais do Brasil, que nasceram nas bases e nelas se enraizaram. São experiências com décadas de existência, que possuem suas práticas já sistematizadas e consolidadas em propostas de políticas públicas alternativas e viáveis. Tais entidades foram muito além das lutas por interesses específicos, antes os incluem dentro das grandes lutas pela vida do Planeta.
Sua contribuição soma-se ao amplo processo de articulação puxado pela Assembléia Popular e o projeto "O Brasil que queremos", por ela elaborado em Brasília em 2005, com a participação de por mais de dez mil representantes de todas as regiões do país. Tanto pela participação das bases como pela qualidade transformadora das suas propostas para a sociedade e Estado brasileiro, o processo da Assembléia Popular é um dos mais promissores fatos sociais e políticos do momento. O debate ali colocado sobre as alternativas para este momento histórico transforma-se então num grande desafio para todos nós: trata-se de colocar escoras novas no sistema antigo, ou de construir um Brasil que seja, de fato, “um País de todos?"
Conclusão
Este contexto de crises que se imbricam e apontam para uma mudança de época, interpela quem entende a missão evangelizadora como anúncio e construção da Paz. Diante de ameaças de guerras, de violência e de destruição de muitas formas de vida, nos vemos desafiados a participar da construção de um novo paradigma para a economia, as relações sociais, a política, a cultura, as relações internacionais e o equilíbrio ecológico. Não cabe mais prender-se ao que esteve em vigor até o final do século 20: o século 21 terá que ser muito mais criativo do que foi o século passado.
Contribuíram para esta análise
Pe. J. Ernanne Pinheiro, Gilberto Souza e Paulo Maldos
Pedro A. Ribeiro de Oliveira
PUC-Minas e ISER-Assessoria
II – Notícias do Congresso Nacional
Crise no Legislativo e o Pacto dos Três Poderes
O Congresso Nacional registrou nos dois primeiros meses deste ano a menor produtividade em plenário dos últimos nove anos: só oito projetos votados pelo Senado e pela Câmara dos Deputados. Representa cerca de um terço do ano de 2008 no mesmo período. E o clima interno é desolador. A cada dia surgem novas denúncias de corrupção de pessoas de seus quadros. Um senador chegou a explicitar o risco de alguém propor um plebiscito para fechar o Congresso. O desencontro dos três Poderes dificulta uma solução: o Executivo legisla via Medidas Provisórias; o Judiciário, atendendo solicitações, também decreta leis... De fato, o Legislativo é o Poder mais exposto e também o mais visado pela grande imprensa.
Essa situação provocou o Pacto dos três Poderes. Em um ato conjunto do Executivo, Legislativo e Judiciário foi lançado, no dia 13.04.09, um "pacto republicano" que contará com cinco projetos de lei a serem enviados ao Congresso. As propostas tratam de questões tributárias e jurídicas para dar agilidade à tramitação de processos. O governo pretende também acelerar a votação dos projetos de escuta telefônica, prisão preventiva, uso de algemas e abuso de autoridade. Alguns temas ficaram fora do pacto por falta de consenso. Também foi acordada a prioridade de propostas já em tramitação nas duas Casas Legislativas: nova lei para conter abusos de autoridades, e a criação de julgamentos colegiados de casos envolvendo organizações criminosas. Entre as novas medidas, atualmente na Casa Civil em fase de revisão, se encontra a idéia de criar um Comitê de Conciliação para negociar dívidas com a União sem precisar levar os casos ao Judiciário. Pretende-se também ampliar o número de defensores públicos e criar limitações ao trabalho das CPIs.
Deliberação em sessões extraordinárias
O Presidente da Câmara, Michel Temer, incomodado com a paralisia do plenário da Casa em face do bloqueio da pauta por Medidas Provisórias (MP), resolveu dar uma interpretação específica para o caso. Pelo seu entendimento, os deputados estariam livres para votar Propostas de Emenda à Constituição (PECs) e projetos de resolução e de leis complementares em sessões extraordinárias da Casa. E as MPs seriam analisadas apenas nas sessões ordinárias. No modelo atual, as MPs passam a trancar a pauta de votações da Câmara e do Senado após 45 dias de tramitação, o que impede a análise de matérias prioritárias. A interpretação mereceu acolhida do ministro Celso Mello, do STF. Caso confirmado no Plenário do STF, Temer já tem uma lista de propostas para serem discutidas imediatamente na Câmara.
Busca de normas para a Filantropia
A Câmara dos Deputados recebeu do Executivo a MP 446/08, que renovava automaticamente todos os Certificados de Entidade Beneficente de Assistência Social. Essa MP transferia a competência para analisar os pedidos de concessão desses certificados e suas renovações: do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) para os Ministérios da Saúde, da Educação e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Desde sua edição, a MP provocou muita discussão. Contudo, foi aprovada pela Câmara. Quando chegou ao Senado, o então presidente do Senado decidiu devolvê-la ao Executivo por não considerá-la nem relevante nem urgente. O ato inusitado foi considerado inconstitucional, uma vez que a MP já havia sido aprovada pela Câmara. A saída encontrada pelo Senado foi emendar a MP, provocando automaticamente sua devolução à Câmara; esta, por sua vez, rejeitou tanto as emendas do Senado como a própria MP já aprovada pela Casa. Para resolver o impasse do vácuo legal, a Câmara aprovou um pedido de urgência para novo Projeto de Lei (PL 3021/08). O Projeto de Lei tem um substitutivo em tramitação também no Senado, tendo como relator o Senador Flávio Arns. Há uma tentativa de acordo – Câmara e Senado – para resolver com urgência esta questão da Filantropia, no momento causando preocupação e ansiedades.
Acordo firmado entre Governos Brasil - Vaticano
O Acordo Brasil-Vaticano está tramitando na Comissão de Relações Internacionais da Câmara, tendo como relator o deputado Bonifácio de Andrada; depois irá para a Comissão de Constituição e Justiça onde se apresentou para relator o deputado Antonio Carlos Biscaia, ex-secretário de Justiça no Ministério da Justiça. No dia 13 de abril, o deputado Nilson Mourão fez uma longa defesa do Acordo (publicada no jornal diário da Câmara), explicitando que o seu objetivo básico é consolidar, num único instrumento, os diversos aspectos relacionados à presença da Igreja Católica no território nacional. Mourão destacou tratar-se de Acordo subscrito de Governo para Governo em que o Vaticano respeita na íntegra o caráter laico do Estado brasileiro, a Constituição e a legislação ordinária... A Igreja, diz o deputado do Acre, não solicita privilégio, apenas a formulação do que já se pratica, para consagrar a sua relação secular com o Brasil.
Comitês 9840 contra a corrupção eleitoral
A última Mobilização Nacional da Campanha Ficha Limpa foi realizada quando a iniciativa atingiu 650 mil assinaturas. O dia 21 de abril foi escolhido para a realização de mais um grande mutirão para angariar assinaturas e novos apoiadores da campanha. Alguns dos 279 “Comitês 9840” definiram ações de coleta em seus municípios. Além das estratégias de cada comitê, a intenção é que todos se unam, montem postos fixos nas cidades para as assinaturas e divulguem a proposta.
Senado aprova regularização de imigrantes ilegais
O plenário do Senado, no dia 01/04/2009, aprovou o Projeto que anistia imigrantes não-legalizados que vivem no Brasil. Esse projeto concede anistia aos imigrantes que entraram no País sem registro oficial até o dia 1º de novembro de 2008, o que deve atingir cerca de 50 mil estrangeiros. Com alterações no Senado, o projeto retorna para uma nova votação na Câmara. O relator do texto no Senado, senador Romeu Tuma, disse que o objetivo da matéria é conceder registro provisório aos imigrantes que apresentem carteira de trabalho e atestado de lisura em antecedentes criminais do seu país de origem. Além disso, os estrangeiros devem comprovar a data que ingressaram no país e apresentar um local de residência fixa. O Presidente Lula ressaltou que desde 1850 o Brasil recebe, "com respeito", imigrantes de várias nacionalidades, o que não acontece em "países ricos europeus".
Adiamento dos feriados para os finais da semana
A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) aprovou o adiamento, para as sextas-feiras, dos feriados que caírem no meio da semana. As exceções serão os dias 1º de janeiro, 7 de setembro e 25 de dezembro. De acordo com o relator, o grande número de feriados que caem no meio da semana dificulta as atividades produtivas. Porém, ressaltou ele, é fundamental que sejam respeitadas as tradições religiosas e de lazer da população. A proposta foi analisada em caráter conclusivo na Câmara e seguiu agora para o Senado.
Medida Provisória sobre a regularização fundiária na Amazônia
A MP n. 458/09 “dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia legal...” A proposta inicial partiu do Ministro de Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger, mas recebeu muitas objeções. O texto foi reelaborado a partir de uma Carta dos nove governadores da Amazônia Legal, reunidos em Roraima, no dia 13.02.09. O relator é o deputado paraense Asdrúbal Bentes. Na opinião do relator, a questão ambiental será o “ponto de maior discórdia” dentro do Congresso.
O Ministro Mangabeira Unger endossou a nova redação porque ela incorporou sua principal tese: “a estadualização e/ou municipalização da regulamentação fundiária através de um convênio com o INCRA, que repassa essas atribuições ao Estado e/ou Município que celebra o convênio; o Ministério do Desenvolvimento Agrário terá a tarefa de fiscalizar as ações dos convênios”. As entidades da sociedade civil vêem muitas incongruências na MP.
Direito à alimentação na Constituição
Merece registro uma Campanha que inclui a alimentação como direito constitucional. A CNBB está participando da Campanha. A Proposta de Emenda à Constituição foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara no dia 28.02.2007 e já havia sido aprovada pelo Senado. Os direitos sociais introduzidos na Constituição tornam-se cláusulas pétreas e passam a ser uma obrigação do Estado brasileiro.
“Olho gordo” nas Terras indígenas
Tramitam no Congresso diversos projetos que impactam negativamente os povos indígenas, retirando ou relativizando seus direitos. Destacamos: - a PEC 38/99: submete à aprovação do Senado Federal as demarcações de terras indígenas feitas pelo Poder Executivo; - o Projeto de Lei 4.791: submete à apreciação do Congresso a demarcação de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios; - treze PDCs (Projetos de Decretos Legislativos): - visando sustar o Decreto 1775/96, que regulamenta a demarcação das terras indígenas.
Estatuto da Igualdade Racial
Esse Estatuto encontra-se há muitos anos em tramitação no Congresso Nacional. Trata-se de antiga reivindicação dos movimentos negros, no sentido de que o Estado brasileiro assuma posições mais favoráveis à comunidade negra, quase sempre vítima de preconceitos.
Essa Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnico-raciais individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnico-racial. Também prevê maiores oportunidades de acesso de negros aos cursos universitários, aos empregos, além de regulamentar as terras quilombolas. Propõe ainda o ensino da contribuição dos descendentes de africanos para a cultura e para o trabalho.
Comissão vai discutir início da vida
A Comissão de Seguridade social e Família aprovou na semana passada a realização de audiência pública sobre "Início da Vida Humana como Marco de Direitos Fundamentais". O autor do requerimento, deputado Henrique Afonso, lembra que em março de 2005 as pesquisas com células-tronco embrionárias humanas foram aprovadas no Brasil, no âmbito da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/05). No entanto, Afonso lembra também que o então procurador geral da República, Cláudio Fonteles, entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a utilização de células-tronco de embriões humanos em pesquisas e terapias, por entender que a vida se dá desde a fecundação. Segundo o deputado, é preciso definir o início da vida: "É preciso trazer o debate sobre o início da vida humana para esta Casa, à luz de premissas jurídicas e científicas, pois vai influenciar diretamente em questões relativas às políticas públicas dos direitos reprodutivos e do aborto, matérias em tramitação no Congresso Nacional".
Temas considerados prioritários para a votação na Câmara
- Reforma tributária. A proposta de reforma tributária em tramitação no Congresso tem despertado críticas de diversos setores da sociedade, inclusive de parlamentares da situação. O principal receio é que a Reforma Tributária ameace o financiamento da Seguridade Social (Saúde, Previdência e Assistência Social). Os deputados na Comissão de Seguridade da Câmara temem que o previsto no texto deixe a área fragilizada. O financiamento atual da Seguridade Social obedece ao prescrito na Constituição de 1988, um modelo vitorioso e elogiado em vários países.
- Reforma Política. Os presidentes da Câmara e do Senado decidiram em fevereiro deste ano criar uma comissão de deputados e senadores para consolidar os projetos em tramitação no Congresso sobre o tema. O governo já enviou ao Congresso um conjunto de propostas, abordando temas como: lista de candidaturas; financiamento de campanhas; inelegibilidade; fidelidade partidária; coligações; punição para captação ilícita de voto; além de cláusula de barreira para pequenos partidos. No entanto, a Reforma pouco tem avançado, apesar do esforço da Frente Parlamentar com participação popular, sob a liderança e empenho da deputada Luiza Erundina.
- PEC que expropria as terras nas quais houver comprovação de trabalho escravo. Esta PEC prevê punições mais rígidas para quem mantiver trabalhadores em condições de escravidão e a expropriação das terras sem indenização. O texto define ainda que as terras expropriadas fiquem disponíveis para a reforma agrária.
Padre José Ernanne Pinheiro
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