domingo, 8 de março de 2009

ENTREVISTA COM JÚLIO JOSÉ CHIAVENATTO - UM DOS PRINCIPAIS AUTORES DE LIVROS DE HISTÓRIA

28/10/2007 - 02h58
"É Impossível ser neutro", diz Júlio José Chiavenato
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ERNANE GUIMARÃES NETO
da Folha de S.Paulo

Um debate em torno da ideologização do ensino da história tem provocado polêmica, com denúncias de livros didáticos que fariam propaganda do governo federal e do regime comunista.
Se, por um lado, esses livros, encomendados pelo Programa Nacional do Livro Didático, continham exemplos extremos de parcialidade, como chamar o chinês Mao Tse-tung de "grande estadista", por outro a disputa entre versões da história é uma constante.
O Mais! foi ouvir alguém acostumado a essas disputas para comentar o caso: Júlio José Chiavenato.
Chiavenato enfrentou um dos exemplos mais pungentes da tese de que a história é escrita pelos vencedores, a história da Guerra do Paraguai como descrita pelos militares, durante a ditadura militar.
Em 1979, lançou "Genocídio Americano - A Guerra do Paraguai" (Brasiliense), questionando a história oficial do conflito. E, com o passar do tempo, o contestador se tornou contestado.
Em vez de enaltecer o "heroísmo" das potências regionais que venceram o regime de Solano López, Chiavenato enfatizou a obediência de Brasil e Argentina à política externa britânica --para a qual o Paraguai pecaria justamente por tentar escapar à sua influência.
Depois de gozar do prestígio de revisar a história contada pelos militares, Chiavenato viu, na década de 90, Francisco Doratioto, professor de relações internacionais da Universidade Católica de Brasília, apresentar uma nova versão, com outras explicações para o conflito: "Maldita Guerra" (Cia. das Letras, 2002).
Na entrevista abaixo, o jornalista autodidata diz que não quis fazer curso superior afirma que as duas versões têm abordagens diferentes, mas não aceita a minimização da influência britânica.
Para Chiavenato, 68, o problema dos livros didáticos atuais não é a ideologia ela sempre está presente, mas sua própria existência: "O ideal seria não haver livro didático, mas, sim, o professor ser qualificado".
Folha -- Como vê a atual revisão da Guerra do Paraguai?
Júlio José Chiavenato -- A cada vez que se escreve um livro de história, os fatos são analisados com os olhos do presente. Quando escrevi meu livro, o país era pressionado pela ditadura militar, o que influenciou sua escrita e a leitura das outras pessoas. O assunto era um tabu na história do país.
Folha -- Até então, a interpretação de que tinha houve genocídio era incomum...
Chiavenato -- Incomum no Brasil. Fora, havia opiniões até mais fortes.
Folha -- O que caracterizou essa guerra como genocídio? O fato de a população masculina ter sido dizimada em combates não é o "normal" em guerras?
Chiavenato -- Depende. Se você analisar o Laos, nos anos 1960, houve um dia em que mil aviões dos EUA bombardearam a população _num só dia! Isso é uma forma de genocídio. O Holocausto foi um genocídio. Na guerra do Paraguai, de 60 a 70% da população masculina morreu, morreram crianças, também... Isso caracteriza genocídio.
Para o Brasil, que via essa guerra como fonte de heróis, era doloroso aceitar esse fato, principalmente com um governo autoritário que vivia desse sistema ideologizado, de criar heróis.
Folha -- Seu texto operou uma "desmistificação"?
Chiavenato -- Foi de encontro a tudo isso, por vários motivos. Primeiro, desmascarava a versão de que fomos os heróis _como se na guerra pudesse haver heróis. Depois, pela reação exacerbada dos militares. As pessoas que não aceitavam que o Brasil tivesse cometido genocídio reagiam como se eu estivesse acusando as pessoas de hoje. Essa é outra forma de ideologizar a história.
Folha -- Em que mudou seu discurso nesses anos?
Chiavenato -- Não mudou, o que mudou foi o entendimento das pessoas.
Folha -- Como avalia a recepção de sua obra ao longo desse tempo? Surgiram novas versões, por exemplo a de Doratioto.
Chiavenato -- Quando meu livro estava no auge do sucesso, o Caio Graco, editor da Brasiliense, me consultou sobre publicar, na coleção "Tudo É História", aquele que seria o embrião de "Maldita Guerra" [publicado com o título "A Guerra do Paraguai - 2ª Visão"]. Disse que não me irritaria, pelo contrário: o livro dele tem uma abordagem diferente do meu, acadêmica, que não conflita com a minha.
No prefácio, digo que não é um livro de história, mas uma reportagem histórica. Quis contar o que foi a guerra, portanto o livro é cheio de sangue.
Outra coisa que escandalizou foram os motivos da guerra, Havia a noção de que o Paraguai era uma "fazendona", mas não era bem assim.
Folha -- Que era o Paraguai? Era um vilão?
Chiavenato -- Era praticamente o único Estado livre da influência inglesa no Cone Sul. O Brasil, a Argentina muito mais, não tomavam nenhuma medida importante sem a anuência da Inglaterra. Não poderiam ter ido à guerra se a Inglaterra não tivesse feito os espetaculares empréstimos que a financiaram. O Paraguai era livre desse esquema. Por ser um país "insular", não era tão fácil, inclusive geograficamente, interferir no Paraguai quanto no Brasil. Em determinado momento, o Paraguai criou um desequilíbrio de poder que, com outras razões --o Paraguai também não é inocente-- gerou a guerra.
O Paraguai estava para a Inglaterra como Cuba está para os EUA. Os EUA querem libertar Cuba, do mesmo jeito que invadiram Granada, um país minúsculo.
O Paraguai tinha uma razão diplomática legal, o acordo com o Uruguai pelo qual deveria socorrê-lo em caso de invasão [O Brasil realizou uma incursão militar no Uruguai, que foi o estopim da guerra]. Só que o Paraguai se valeu desse acordo para fazer uma política nada racional. O que faltou ao Paraguai foi uma classe dirigente capaz de articular uma convivência pacífica com o Brasil e a Argentina.
Folha -- Que diz de pesquisadores que amenizam a influência da Inglaterra, como Doratioto?
Chiavenato -- Não se pode ignorar que, quando começou a guerra, o Brasil começou a tomar empréstimos cada vez maiores da Inglaterra. Nunca poderia ter sustentado a guerra sem os empréstimos. A dívida externa do Brasil cresceu e os empréstimos foram quase exclusivamente para a guerra. É evidente que na relação com a Inglaterra havia várias contradições _como há na relação com os EUA hoje.
Folha -- O que o aluno de escola aprende sobre a Guerra do Paraguai hoje está mais próximo da realidade?
Chiavenato -- Depende do professor. De 1920 a 1979, não houve nenhum livro "novo" sobre a Guerra do Paraguai. Desde então surgiram dois livros de certa importância: o de Doratioto e o meu. É o maior conflito da América do Sul, no entanto só há esses livros --há teses. Esses dois livros estão próximos da realidade, dão condições de o professor ensinar. Mas, infelizmente, hoje está tudo ideologizado.
Folha -- Há uma falsa aparência de neutralidade?
Chiavenato -- É impossível ser neutro. Já imaginou escrever um livro sobre o Holocausto e ser neutro? Foram 6 milhões de mortos, é preciso ser contra. A ideologia é o tema central de meus últimos livros: ao falar sobre a morte, a religião ou sobre os viajantes no Brasil, a gente não chega perto da verdade porque sempre há uma barreira ideológica.
Folha -- E a ideologia em "Projeto Araribá", livro didático que usou textos de divulgação do programa Fome Zero, ou em "Nova História Crítica", considerado extremamente parcial contra o capitalismo e pró-comunismo?
Chiavenato -- A pior coisa é quando o sujeito certo diz o que pensa de forma errada, querendo reforçar aquilo em que acredita --vira ideologia. Não tem nada de mais ser a favor ou contra o socialismo ou o comunismo. Mas há formas de dizer com responsabilidade e sabendo a quem dizer. Tem gente que quer convencer; já o professor deve ajudar o aluno a tirar suas próprias conclusões.
Folha -- Há um "revisionismo lulista" acontecendo na escola brasileira?
Chiavenato -- Não acho nada duvidoso, do jeito que esse pessoal é... Mas não tenho elementos para afirmar.
Folha -- Pelo que viu desses livros, parecia exagerada a apresentação dos conceitos?
Chiavenato -- Os autores dizem se defenderam dizendo que as citações apareciam fora de contexto. Para mim era a coisa certa dita de forma errada. Agora vou entrar bem, vão chover críticas da esquerda sobre mim.
Folha - Falando em crítica "de esquerda", que acha do caso Luciano Huck? Seu desabafo foi
considerado reacionário...
Chiavenato -- É a ideologização. Porque é rico não pode ter sentimentos? O artigo tem a visão dele, mas a reação a ele foi carregada de ideologismos.
Folha -- Transformaram o crime em luta de classes?
Chiavenato -- E não tem nada a ver uma coisa com a outra. É claro que a bandidagem é fruto da miséria, mas não só.
Folha -- Dá para ensinar história por meio do cinema brasileiro? Como aparece a ideologização da história em "Tropa de Elite", "Cidade de Deus" ou "Carandiru"?
Chiavenato -- O cinema é uma coisa mais aberta. Fica no campo do debate; os autores de livro discutem com mais violência, reagem com vaidade às críticas. O filme a gente vê e depois abre para debate. No livro, não existe o outro; é cada um falando por si.
Folha -- Qual sua opinião sobre os livros didáticos de história no Brasil?
Chiavenato -- Primeiro, acho que não deveria existir livro didático. Acaba sendo ideológico, pois o maior consumidor de livros didáticos no Brasil é o governo. Ele já é feito pensando-se no currículo escolar, já há ideologia.
Folha -- O currículo restringe?
Chiavenato -- O autor não tem liberdade criativa. As grandes editoras não encomendam a um historiador; contratam cinco ou seis para escrever de acordo com a proposta de quem vai adotar o curriculo; assim, o livro já é dirigido para uma visão bem limitada da história. O ideal seria não haver livro didático e o professor ser qualificado --infelizmente não é.
Folha -- Está no PNLD?
Chiavenato --De jeito nenhum.
Folha -- O sr. tem nível superior?
Chiavenato -- Não, sou autodidata. Não quis perder tempo com faculdade, vi a porcaria que era.
Folha -- Como autor de livros de história, que acha da norma do PNLD que estabelece como requisito para participação a comprovação de nível superior do autor?
Chiavenato -- Do ponto de vista deles, estão corretíssimos: pegam, teoricamente, as pessoas mais qualificadas. Mas resultado é esse que você está vendo.

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